O que uma casa dividida ao meio e um coelho têm em comum?
Lísia Carla Vieira Rodrigues*
Segundo Nietzsche, “o acaso é Deus quando viaja incógnito.”
Quando fui convidada a coordenar o Cejusc/Jacarepaguá, pois sou Magistrada-Mediadora, pensei que Deus estivesse incógnito, mas, na verdade, Deus assinou, carimbou e reconheceu firma na minha designação.
Comecei sem saber muito bem do que se tratava a mediação, e, diante dos novos desafios, iniciei meus estudos, e daí em diante não parei mais, pois me apaixonei.
Ainda com poucas luzes no instituto da mediação, fui chamada a atuar em alguns casos bastante interessantes e absolutamente “mediáveis”. Explico: a partir deles, comecei a aplicar as técnicas da mediação durante as audiências, e, confesso, o resultado foi incrível, e, à época, inesperado para mim.
No primeiro, filhos do primeiro casamento de um pai comum, após o falecimento do genitor, invadiram a casa que era ocupada pela nova companheira e sua filha, dividindo o imóvel ao meio com uma corda.
A companheira atual do falecido, por óbvio, não estava nem um pouco satisfeita com a situação e propôs ação de reintegração de posse, e, diante de mim, se encontravam quatro filhos da primeira união, a companheira e a filha da segunda união.
Confesso que, se não fossem as técnicas de mediação, lidar com tal hipótese seria bastante complicado.
Comecei com a escuta ativa, já que um dos irmãos, que parecia o líder, era o mais falante; o mesmo ocorrendo com a companheira atual do genitor.
E a partir daí, a pauta subjetiva foi ficando muito clara: o importante não era a divisão do patrimônio (pauta objetiva), mas, sim, todo o desamor e abandono que sofreram aqueles filhos, já que, lamentavelmente, seu pai se separou não apenas da sua primeira esposa, mas também dos seus filhos.
Na verdade, toda a mágoa era expressa naquela casa dividida ao meio, onde se buscava a presença e o reconhecimento desses filhos não apenas na partilha do patrimônio, mas também, na vida do seu pai. Era como se dissessem: “nós também existimos”.
Muita tranquilidade e conversa foi necessária para acalmar os ânimos, acabando a companheira e sua filha, irmã dos Réus, por tentar a convivência familiar pacífica, estimulando o convívio e a parceria entre todos os irmãos.
O melhor de toda a situação: acabamos a audiência com o acordo sobre a venda e partilha do imóvel, e, ainda, com a seguinte frase: “nossa família se dá muito bem; não teremos mais problemas”. Sinceramente, espero que estejam vivendo bem. Nada como prestar atenção no discurso e se colocar no lugar do outro...
Mais ou menos um mês depois, chegou o coelho, móvel de uma grande discórdia entre vizinhas.
Era o caso de uma vila, com a parte comum voltada para os fundos, em que uma das moradoras, que também era zeladora do local, possuía um coelho como animal de estimação. Confesso que foi o maior coelho que já vi na minha vida.
Pois bem.
O coelho teimava em frequentar a casa de uma senhora, que, claro, detestava o animal, o que a levou a propor ação de obrigação de fazer e indenização, para impedir a entrada do roedor. Na verdade, por conta do tamanho do animal, todos os obstáculos que eram colocados para impedir a sua entrada eram insuficientes; e a senhora não podia fechar a porta por conta do calor.
Desnecessário dizer que os ânimos estavam bastante acirrados no início da audiência, já que a troca de ofensas pretéritas entre as duas foram imensas e representadas por diversos registros de ocorrência policial.
Havia ali a necessidade enorme de as duas explicarem as suas razões, num tom de intenso desabafo, e, neste passo, a escuta e a observação do comportamento das vizinhas foram de extrema importância.
Enquanto a Ré se mostrava mais receptiva em encontrar uma solução, já que sequer imaginava que o seu animal de estimação causasse tamanho transtorno; a Autora ainda estava bastante resistente, e aos poucos, o amor que a dona do coelho possuía pelo animal, foi “amolecendo” o seu coração; e também a tomada de consciência de que a vizinha desconhecia as perturbações que passara por conta do roedor. Resumindo: o mesmo fato, com duas visões e sentimentos completamente diferentes.
Por fim, decidiram as partes colocar uma tábua de madeira em altura suficiente para que o coelho não pulasse, além de melhorar a ventilação da casa da Autora.
Solução simples que o conflito e a falta de diálogo impediram que fosse percebida.
Voltando à questão inicial: o que uma casa dividida ao meio e um coelho têm em comum?
No meu caso, a certeza de que as técnicas de mediação mostram-se incríveis na solução dos conflitos, e também a certeza de que ouvir o outro, colocar-se no lugar do outro, compreender o outro, além de uma boa conversa são capazes de melhorar e muito o ambiente em que vivemos, além de nos fazer crescer como serem individuais e sociais que somos.
* Lísia Carla Vieira Rodrigues - Juíza da 4ª Vara Cível de Jacarepaguá, coordenadora do Cejusc Jacarepaguá, membro do Fórum de Métodos Adequados de Solução de Conflitos da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), mediadora certificada pelo Instituto de Certificação de Mediadores Lusófonos (ICFML).