Mediando crianças
Ana Rosenblatt
Domingo de manhã. Eu lia meu livro tranquilamente no play do meu prédio enquanto minha filha e a prima corriam por ali. Até que as risadinhas e os gritos de excitação viraram lágrimas magoadas.
- Manhê, ela me empurrou!
- Empurrei nada, ela que roubou na corrida!
Pensei que elas fossem conseguir resolver sozinhas, mas a coisa foi escalando.
- Você tá me chamando de trapaceira?
- Nunca mais falo com você!
E agora? Quem começou? Quem é a culpada? Como fazer justiça? Como acabar com a briga?
Pausa.
E se eu mudar as perguntas?
Observo meus pensamentos. O que é mais importante pra mim na situação?
Desde que minha filha nasceu, mergulhei nos estudos sobre parentalidade respeitosa. Assumi o compromisso de educá-la entendendo que ela é um ser humano que merece o mesmo respeito e dignidade que eu. Quero que ela me respeite, não que me tema. Quero ajudá-la a desenvolver um senso interno de justiça. Que entenda seu valor. Que seja norteada pelo respeito a si própria e pelo coletivo. Quero ser a líder firme e gentil de que ela precisa. Quero que ela saiba que pode contar comigo mesmo em seus piores momentos. Que é seguro chorar, sentir medo e raiva: seus sentimentos são bem-vindos. Que vou tratar seus erros como oportunidades de aprendizado, e nunca causar medo e humilhação por meio de punições. Não quero que ela me obedeça; quero que me respeite e que aprenda a refletir sobre suas ações e escolhê-las com responsabilidade.
Educar de uma forma diferente de como fui educada demanda sair do “piloto automático” e olhar permanentemente para minhas atitudes como mãe, escolhendo como agir a cada momento; voltar para meus norteadores permanentemente.
Minha solução automática ao me deparar com o conflito entre as crianças seria interromper a briga, dizer quem tem razão, ou simplesmente levar as duas embora do play. Só que essa estratégia imediatista não contribui para que as crianças ganhem autonomia e responsabilidade para resolver seus conflitos. Prefiro um caminho que as ajude a construir recursos para lidar com as divergências preservando o respeito mútuo.
Mediar crianças pode ser bastante desafiador. Assim como uma mediadora na mesa de mediação, me coloco como uma parceira para a resolução do problema, e não como juíza. Procuro criar conexão, entender o que é importante na situação, para então ajudar a buscar estratégias que atendam aos interesses de todos. Procuro sair da superfície, atentando para as necessidades das crianças, e não para a disputa por “quem tem razão”.
Saio do lugar de autoridade para ser parceira das crianças nessa jornada.
Me dirigi primeiro a minha sobrinha, que estava mais exaltada:
- Clara, o que aconteceu?
- A Catarina roubou na corrida!
- Ah, vocês estavam apostando corrida – tentei recontar a história de uma forma mais objetiva.
- Estávamos, e ela saiu na frente!
Minha pequena interveio:
- Ela me empurrou!
- Empurrei pra você ir pra linha de partida!
- Deixa eu ver se eu entendi: vocês foram apostar corrida, e a Catarina saiu na frente da Clara. Aí a Clara ficou tão chateada que a Catarina não tava na linha de partida que empurrou ela pro lugar. A Clara queria que as duas saíssem do mesmo lugar pra terem as mesmas chances na corrida...
Catarina desabou:
- Eu não sabia onde era a linha de partida e agora ela tá me chamando de trapaceira... - as lágrimas rolavam em meio à raiva e à mágoa. Deixei fluir.
As meninas estavam cansadas e famintas, tinham passado a tarde brincando. Quando se acalmaram, resolvemos subir pra fazer um lanche.
Enquanto lavava os pratos, ouvi a conversa das meninas, que, entre um gole de suco e uma mordida no sanduíche de presunto, combinavam: “da próxima vez vamos levar um giz pra combinar onde é a linha de partida?”
....
Passei 5 anos escrevendo para esse blog, um projeto nutrido com muito carinho e amor. Nesse tempo, muita coisa mudou e meus estudos sobre parentalidade me levaram para novos caminhos. Sinto que meu ciclo no blog se fechou e por isso me despeço de vocês: esse é meu último texto para esse projeto lindo, que segue seu rumo com outras mulheres cheias de disposição e novidades. O blog teve um papel importante na minha jornada, e, olhando pra trás, vejo que quase todos os meus textos falam, de uma forma ou de outra, sobre parentalidade... Atualmente tenho uma página no Instagram para conversar sobre parentalidade, comunicação não violenta, e otras cositas... Convido vocês a conhecerem o @ateliedasfamilias, vai ser um prazer recebê-los. Vejo vocês, mediandoporaí! :)
Comments