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Cultura do diálogo, mediação e futuro

Ian Velásquez*



Em Vidas Secas, Graciliano Ramos nos apresenta os desafios enfrentados por uma família de retirantes no sertão nordestino. Em uma das passagens, narra-se o (des)encontro de Fabiano, o pai da família, com o soldado amarelo, ocasião em que o nosso protagonista retirante acaba sendo encarcerado. Ao se ver injustamente preso, Fabiano reflete que, por não ter educação, não conseguiu se defender e se expressar de modo a “botar as coisas nos lugares”. Essa situação é relevantíssima para o contexto social brasileiro, em que muitos desconhecem os seus direitos, razão pela qual deixam de exercê-los.


Esse alerta é imprescindível para o âmbito jurídico, meio pelo qual se regulam as relações humanas, visto que o direito legislado também deve atentar à realidade da vida em sociedade. Como já nos dizia Abel Andrade, ao comentar o código civil português: “não se pode conceber o Direito a não ser no seu momento dinâmico, isto é, como desdobramento constante da vida dos povos”.


É com base nessa interlocução que proponho a discussão entre a cultura do diálogo, a mediação e seu futuro como método de resolução de conflitos.


Como se sabe, a mediação é utilizada como um meio de pacificação social por diferentes civilizações há milhares de anos. A mediação “moderna” (que surgiu com o advento do cientificismo dos métodos de negociação e de gestão de conflitos) faz parte do cotidiano dos anglo-saxões e se encontra em franca expansão em outras culturas, como as asiáticas, que, apesar de serem muito diferentes das sociedades mais individualistas anglo-saxônicas, têm uma forte cultura de autocomposição, colocando-a como meio honroso de solucionar conflitos.


Se percebe, contudo, uma persistente resistência à adoção do instituto da mediação como meio de solução de disputas nas sociedades oriundas ou influenciadas pela tradição romano-germânica.


Segundo o excelente estudo de Giuseppe de Paolo (“A Ten-Year-Long “EU Mediation Paradox” When an EU Directive Needs To Be More …Directive”), existe um paradoxo na União Europeia: a mediação é um método universalmente elogiado e promovido com entusiasmo, porém utilizado em menos de 1% dos casos civis e comerciais. A conclusão do estudo é a de que a adoção de uma mediação obrigatória, mas fácil de se desvincular (“opt out”), é a melhor maneira, à luz da economia comportamental, de cientificar a população desse método e, consequentemente, de criar uma verdadeira cultura de mediação na população.


Curiosamente, o Brasil tomou o passo recomendado por Giuseppe três anos antes da elaboração do estudo europeu. Nós brasileiros estamos cientes da quantidade excessiva de processos, que atingiu o recorde histórico de 100 milhões no ano de 2015 (existia à época praticamente um litígio judicial a cada duas pessoas). Não faltam artigos e palestras discutindo a existência de uma cultura do litígio no país.


Nesse contexto, deram-se três importantes passos normativos para uma política pública de tratamento dos conflitos por meio da mediação: (i) a Resolução do CNJ nº 125 de 2010; (ii) a Lei de Mediação de 2015; e (iii) o Código de Processo Civil de 2015 (“CPC”). Esse último previu a obrigatoriedade da audiência prévia de mediação (ou conciliação).


Ainda assim, mesmo com as partes do processo sendo “obrigadas” a conhecer o método, percebeu-se uma diminuição de 18,8% no número de sentenças homologatórias de acordo desde a entrada em vigor do CPC em março de 2016, conforme o relatório Justiça em Números de 2021.


É por tal motivo que a mediação legislada, para que não seja desconexa da realidade, precisa da internalização da cultura do diálogo pela população brasileira, i.e.: mediação praticada. Os usuários (rectius: mediandos) – e os advogados - devem conhecer a possibilidade de solucionar os conflitos por meio da mediação e, para além disso, devem estar dispostos a proceder nesse ambiente negocial, em vez de recorrer à atuação passiva em um processo judicial, esperando a solução/sentença imposta por um juiz.


Em outras palavras, não basta a edição de leis, é imprescindível que se fomente uma cultura de mediar/negociar os conflitos de modo a dar corpo à excelente estrutura normativa existente.


Trata-se da segunda dimensão da validade das normas de Miguel Reale: a eficácia social.


Diversos movimentos nesse sentido ocorrem atualmente. Um dos principais é o ensino da mediação. Na medida em que os futuros operadores do direito tomam conhecimento de que não existe tão somente um caminho para a solução dos conflitos, podem indicar o método mais adequado para os seus clientes.


A mediação escolar, por sua vez, é um excelente exemplo de como incorporar a cultura do diálogo na educação (i.e., conflito como oportunidade de aprendizado). Por meio dela, solucionam-se os conflitos de crianças e adolescentes, bem como se naturaliza o caminho da negociação dos conflitos pelos jovens, fazendo com que a “briga”, sendo ela física, verbal ou jurídica, não se configure como o modus operandi para se resolver um problema.


Outra movimentação que não parece tão importante em um primeiro momento, mas é fundamental, são as competições universitárias, espaço em que os alunos podem aprender a mediação de maneira ativa. Participam como mediandos, advogados e mediadores, compreendendo as vantagens e a utilidade do instituto, bem como gerando interesse desses estudantes nos métodos autocompositivos.


Além disso, todos os eventos propulsores da mediação têm um papel importante para engajar o público acadêmico e profissional. Discussões de temas sensíveis por meio de palestras, seminários, webinários, lives, podcasts, bem como a escrita e a publicação de artigos, livros e coletâneas, amadurecem o instituto teoricamente e propagam relevantes conceitos para a sociedade.


Percebe-se, assim, existir um grande esforço para desenvolvimento do instituto no âmbito jurídico. O que acaba ficando ausente no contexto social brasileiro é a ponte entre o que se discute no meio acadêmico e o exercício do diálogo pelos (potenciais) usuários.


Fato é que uma mudança tão expressiva no modo de funcionamento de uma sociedade não ocorre da noite para o dia. É necessário que o método seja desenvolvido e propagado, para que, então, em um processo metamórfico, a mentalidade dialógica se incorpore à sociedade brasileira.


De todo modo, cada passo dado em direção à publicização do instituto é relevante. A psique humana não é imutável e, como ensina Skinner, comportamento é essencialmente estabelecido por meio da educação.


Isso posto, como um feliz produto de esforços de uma geração educadora vanguardista, preocupada com a cultura do diálogo, posso dizer que estamos percorrendo um árduo, mas fundamental, caminho.


* Ian Velásquez - graduando pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Cofundador e monitor do Centro de Métodos Autocompositivos (CMA) vinculado ao Departamento de Direito da PUC-Rio.

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