Chance de recomeçar
Eunice Maciel*
– Quero deixar claro que só estou aqui por causa do meu filho – atestou ele.
– Ele é meu filho também – rebateu a mulher. Ex-mulher.
– Boa tarde e sejam bem vindos à mediação – foi o que me ocorreu responder.
O ex-casal não se olhava e o clima de raiva pesava concreto no ar. Sentaram-se lado a lado, exemplos vivos de ódio em qualquer aula sobre linguagem corporal. Os corpos pendiam para lados opostos como se uma força invisível os empurrasse para longe um do outro.
Preparei-me para uma mediação complicada.
Abertura feita, partes e advogados apresentados, fomos aos fatos. Era certo que o “só estou aqui por causa do meu filho” vinha da necessidade de demonstrar que a guerra continuava. O processo corria na vara de família, embora a dissolução do matrimônio, a guarda e os (em geral mais difíceis) "alimentos" e partilha estivessem resolvidos. Faltava definir as regras da convivência.
– 2as, 3as e 4as de manhã, ele fica comigo. Entrego na creche. O pai pega na creche na 4ª à tarde e fica com ele até 6ª. Fins de semana alternados. Na 2ª, o pai entrega na creche.
– Eu topo se depois de seis meses a gente inverter. O tempo dela está maior.
– Não está.
– Está sim. Nos fins de semana que não são meus, só vou ver meu filho dois dias numa semana inteira.
Eu ouvia aquilo cuidando para lembrar que estávamos tratando de uma criança, e não de um pacote. A frieza e pragmatismo dos pais não ajudava.
– Como é a rotina de pegar e buscar na creche, e quem fica com a criança enquanto ela está em casa? – perguntei.
Precisava tomar pé dos fatos, entender como aquilo vinha se desenrolando até então.
– Minha mãe pega.
– Ele tem babá. A babá vai de ônibus e volta com ele de taxi.
– E a que horas vocês costumam chegar em casa?
Tarde. Ambos trabalhavam e chegavam tarde em casa. Muitas vezes o filho/pacote já estava dormindo. A necessidade de tê-lo por um número igual de horas contadas não era pela vontade de conviver, mas para infernizar o outro. O filho era mero coadjuvante naquele filme de horror.
A mediação avançava com acusações de parte a parte, aí incluídas avós cuidadoras e uma babá “leva e traz”, que não só levava e trazia a criança, mas também os detalhes da nova rotina de um e de outro.
Finalmente surgiu a tão esperada fala que serviria como o turning point da mediação.
– Só aguento esse blá-blá-blá pelo amor que tenho ao meu filho.
Era a minha deixa de mostrar que não estavam ali pelo amor ao filho. A mim parecia que o bem-estar da criança era a menor das preocupações. Sempre com um “me corrijam se eu estiver errada”, fui fazendo com que vissem o absurdo da situação.
Enquanto eu falava, perguntava e os fazia falar, os rostos iam se transformando, os corpos amolecendo, a tensão amainando, a emoção aflorando. Essa é a mágica da mediação que pode, ou não, ocorrer. É um momento, uma frase, um gesto inesperado que, como um milagre, muda tudo.
Sugeri me reunir separadamente com cada um. Toparam. Em poucos minutos ficou claro que queriam um acordo, só não admitiam dar o braço a torcer. Estavam cansados, exaustos, não davam mais conta do trabalho, babá, briga, criança. Queriam acabar logo com aquilo.
A mediação caminhava. Uma nova data foi marcada para que voltássemos a conversar.
– Você pode na 3a da outra semana?
Era a primeira vez que se falavam. Primeira vez que se olhavam.
– Posso na parte da tarde.
– 15 horas?
– Sim. Anotado.
– Então, até lá.
Vi um quase sorriso nas caras inchadas de choro e torci para que até a próxima reunião pensassem na chance que tinham nas mãos. Só pela construção de um acordo conseguiriam ultrapassar aquela etapa e entrar de peito aberto numa nova fase da vida. Não seriam mais um casal, mas seriam para sempre pais de um filho em comum. Construindo juntos o modelo que atendesse a ambos, teriam a possibilidade de preservar um convívio saudável e prazeroso com a criança no dia a dia e, sobretudo, em datas especiais – festinhas de aniversário, reuniões de escola, formatura, casamento… e, mais adiante, a convivência com os netos, que teriam, também, em comum.
E, já com as respectivas vidas refeitas, que pudessem olhar para trás e reconhecer, com carinho, aquilo que os fez, um dia, querer estar juntos para sempre.
*Eunice Maciel - é mediadora de conflitos formada pela FGV- SP, certificada pelo ICFML, e capacitada em Práticas Colaborativas no Direito.
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