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Mensageiros da Paz

A prática constante de qualquer atividade, seja ela qual for, com o tempo resulta em certa naturalização, o que dificulta e, por vezes, impede a autocrítica, acabando por se impor como rotina sob a qual toda circunstância tende a se adequar. Trata-se do conhecido processo de acomodação, que Dostoiévski, em Recordações da Casa dos Mortos, escrito em 1862, descreve como a principal característica do ser humano.


Essa foi a minha constatação quando, na audiência de um processo de família, a advertência de uma das partes interrompeu um costume.


Senhor Oswaldo e Dona Ana chegaram separadamente, acompanhados dos respectivos advogados, e com eles se mantiveram em conversação reservada, cada qual numa extremidade da sala, como que a justificar o fato de se posicionarem de costas um para o outro, até serem chamados pela Oficial de Justiça.


Embora sentado e de cabeça baixa, entre um e outro despacho com assessores, pude perceber certa inquietude entre os presentes, advogados e partes, o que me fez antecipar o término da tarefa, sinalizando aos auxiliares para que se iniciasse a audiência.


Convidados a tomarem assento à longa mesa retangular, os advogados ocuparam, como de praxe, a posição mais próxima ao juiz, ambos ao lado de seus constituintes.


O silêncio prolongado e o ambiente tenso recomendavam-me a tomada de iniciativa, e busquei, descontraidamente, fazer com que todos ficassem mais à vontade. Juiz recém-concursado, com a autoconfiança em dia pela convicção de que mudaria o mundo, cumprimentei todos, e apresentei-me, iniciando a preleção sobre os motivos da audiência e seus objetivos.


Como havia questões processuais precedentes ao seguimento do processo, dirigi-me aos advogados a respeito de prazos, documentos, incidentes e medidas de prova, enfim, questões técnicas, a fim de tornar o curso do caso mais rápido e fácil.


Conversávamos amistosamente quando fomos surpreendidos por Dona Ana. Com ar de contrariedade e em tom de voz elevado, pediu licença, calando o próprio advogado, e disse que precisava falar.


Em movimento quase simultâneo, eu e os advogados a advertimos sobre a impossibilidade de a parte se manifestar naquele momento, ainda mais sem autorização. Ato contínuo, com um gesto sereno e comedido, seu advogado pousou a mão sobre seu braço, como a lhe pedir silêncio e paciência.


Restabelecida a ordem da audiência, de volta ao diálogo com os advogados, mais alguns minutos e, novamente, fomos interrompidos pela mulher, que, nervosa, insistia em ser ouvida, argumentando que se tratava de uma audiência, que estava ali para falar, e que não conseguia entender o que estava sendo tratado diante de si.


Novamente a adverti, agora um pouco mais firme, de que ela não poderia se manifestar até que lhe fosse facultado tal direito, e que sua insistência implicaria a continuação do ato sem a sua presença. Mais uma vez, o velho advogado, calmo e solícito, interveio pedindo comedimento a Dona Ana.


Mal retomamos a conversa quando, pela terceira vez, a mulher interrompeu, ainda mais impaciente e com o tom de voz que demonstrava toda sua indignação.


- Eu preciso falar! Não admito ser deixada de lado. Não aqui! Sou a pessoa mais interessada no assunto, o qual me atinge diretamente. Estudei o suficiente para conhecer os meus direitos, e sei que posso falar perante um juiz, e se o senhor não me ouvir, procuro outro que me ouça – disse, levantando-se e chamando o advogado para deixarem a sala.


Antes que pudesse dizer qualquer palavra, o marido interveio, com sutil ironia:


- Entende, senhor juiz, o motivo da separação!?


Em meio à discussão acalorada que se seguiu, com troca de insultos entre as partes, mantive-me silente e atento, refletindo que aquela senhora estava certa. O inusitado de sua provocação causou profunda surpresa e a imediata reação dos advogados, que a repreenderam com rigor. Até mesmo a Oficial de Justiça, talvez por ser mulher, sentiu-se à vontade para dirigir a Dona Ana dura advertência, com ameaça de expulsão da sala, enquanto o casal trocava injuriosas farpas de sentimentos represados em quatro décadas de relacionamento.


Enquanto isso, em divagação instantânea que, para mim, pareceu estender-se por longos minutos, um cipoal de pensamentos fragmentários invadiu minha mente. Lembrei-me de meu pai, de sua interpretação sobre a virtude do equilíbrio e a importância da prudência, revisitando passagens de Aristóteles, lições de doutrinadores do direito constitucional e garantias de direitos por meio do processo; súbito assomaram trechos de filósofos da linguagem, que advertiam para a tradição, a literatura e o diálogo entre as partes e o juiz, como numa comunidade cooperativa em busca de solução, não para o litígio judicial, mas para o conflito interpessoal subjacente ao processo.


Ao despertar do meu transe instantâneo, mas profundo, e retomar a atenção para o meu redor, reassumi a responsabilidade pela audiência, pedi calma a todos, e, em seguida, solicitei aos advogados que trocassem de lugar com seus constituintes.


Surpresos, algo resistentes, ainda esboçaram alguma ponderação invocando direitos corporativos, mas logo assentiram e levantaram-se para que marido e mulher tomassem seus lugares e se aproximassem.


Com voz calma e pausada, pedi então que Dona Ana expusesse suas impressões, e que apresentasse, sem medo, mas com respeito, o que tinha a dizer no seu dia na Corte.


A partir daí, num relato pungente de sentimentos, represados por décadas, deixou claro a todos que não havia resistência ao pedido de separação feito pelo marido.


Na verdade, ela se reconhecia envelhecida e sem os dotes que, na juventude, atraíram a antiga paquera, logo transformado em predileto da família de filha única, e, mais tarde, eleito sucessor dos negócios do sogro.


Logo o Oswaldo, menino de origem pobre, que se dividia entre cuidar dos irmãos menores e auxiliar os pais feirantes. Mesmo excluído dos círculos dos abastados, Oswaldo cresceu com os valores de uma mãe carinhosa e de um pai austero, quase rústico, porém afetuoso. Bem-apessoado e educado, Oswaldo teve seus esforços nos estudos e sua dedicação ao trabalho logo reconhecidos pelo sogro, que se tornaria, após a despedida dos pais e a emancipação dos irmãos, sua grande referência de vida.


O passar dos anos, que lhes deu o casal de filhos e os seis netos, havia sido benevolente com Oswaldo, que se conservara em razão de exercícios físicos constantes, cuidados médicos frequentes e alimentação regrada, e, mais recentemente, uma jovem acompanhante à qual pretendia de vez se unir, para as últimas décadas que ainda teria pela frente.


Ter-se devotado exclusivamente ao marido, aos filhos e à casa consumiu as forças de Dona Ana, deixando-a dependente de fiéis e antigos colaboradores domésticos, os quais cuidavam com zelo da mansão construída por seus pais, onde residia desde que nasceu.


Aceitava o divórcio, mas não tinha condições de se sustentar, não agora, aos setenta anos de idade, e não queria depender de filhos ou netos. Tampouco reconhecia em si qualquer capacidade para administrar recursos financeiros, com os quais nunca havia se preocupado, e não queria reter consigo qualquer numerário. Não saberia o que fazer com o dinheiro.


Dona Ana reconhecia a legitimidade do desejo do marido, e até desejava-lhe sorte e sucesso. Não o atrapalharia e prometia não interferir em sua vida. Mas pedia que Oswaldo continuasse a prover as despesas da casa, onde ela pretendia continuar a viver na companhia dos antigos auxiliares – duas empregadas, um jardineiro e o motorista. Se possível, gostaria que Oswaldo permanecesse responsável pelo pagamento das contas. Ela continuaria a cuidar do abastecimento da despensa, dos pequenos reparos na casa e da manutenção dos jardins.


Antes de terminar, parecendo superar íntima resistência, Dona Ana ainda pediu que o ex-marido de vez em quando aparecesse, ou ao menos telefonasse, para que não se sentisse sem aquela que tinha como a melhor parte de sua vida.


O marido sentiu o impacto da história contada pela mulher, com a qual mal havia falado nos últimos anos. Embora residissem na mesma casa, cada qual passou a ocupar uma parte de cômodos que uma obra havia transformado em aposentos exclusivos, o que perdurou até sua transferência recente para um apartamento com a nova companheira.


Oswaldo sabia que não a amava mais, mas aquela conversa o fez lembrar da trajetória de ambos, da profunda gratidão aos pais de Dona Ana, pela família que o acolhera ainda jovem e o salvara de um destino de anunciadas dificuldades, e do quanto haviam sido felizes com filhos, netos, parentes e amigos. Entre lágrimas, cabeça baixa às mãos, reconheceu-se envergonhado e revelou todo o afeto que nutria por aquela que fora sua companheira incansável e amiga constante, e que, por quarenta anos, lhe permitiu multiplicar o patrimônio e ampliar seus horizontes pessoais e intelectuais.


A complexidade do caso não permitia uma solução impositiva. Estávamos em 2006. Não eram muitas as experiências com as soluções dialogais, e foi intuitivamente que a mediação se impôs como a melhor forma de lidar com aquela relação.


Numa dessas coincidências que não se explica, dias antes havia recebido a visita de alguns jovens que pretendiam experimentar algo inédito na justiça com a instituição de um grupo de reflexão para resolver conflitos entre pessoas envolvidas em questões familiares complexas. Na ocasião, não dei maior atenção, pensando apenas na quantidade de processos que poderiam ser evitados. Com o passar do tempo, os resultados foram surgindo e mostrando que todos que passavam por aquele grupo tinham seus conflitos resolvidos e não retornavam senão para agradecer o atendimento dispensado. Lembrei, então, daquele pessoal.


Como pude, administrei olhos e garganta, e não me permiti lágrima ou voz embargada. Firme, mas buscando delicadeza em cada palavra e gesto, e com um acréscimo de compaixão, único sentimento que cabia naquele pequeno espaço do Fórum, convidei-os para que o nosso caso – sim, o processo agora era nosso caso – prosseguisse, não de forma adversarial, mas pelo diálogo, com a assistência e a intermediação de profissionais especialmente capacitados que conheciam mais a alma do que as leis, e que os auxiliariam na busca por um consenso, não uma sentença.


Ressaltei que os advogados poderiam acompanhá-los, o que lhes daria maior segurança. Por isso, não me surpreendi com a imediata concordância daqueles experientes profissionais, os quais, sem qualquer condicionamento, incentivaram seus clientes a refletir sobre essa que se descortinava como a melhor das opções.


Durante uma pequena pausa na explanação, antes que algo mais fosse dito, partiu de Oswaldo o olhar sincero em direção a Ana, que, sem relutar, retribuiu o gesto. Deram-se, então, as mãos, e assim ficaram, mais demoradamente do que de costume. Desculparam-se francamente e prometeram um ao outro dignificar a memória dos pais dela, honrar seu passado e sua história, e compartilhar com os filhos e netos a última etapa da vida.


Oswaldo e Ana deixaram a audiência aparentemente mais leves. Ambos continuariam a tratar dos demais detalhes da separação, do destino do vasto patrimônio – que Oswaldo sugeriu doar aos filhos –, da definição de uma pensão para a mulher e dos cuidados que sua saúde inspirava, com o suporte de mediadores de sua confiança, indicados por seus advogados, que os acompanhariam colaborativamente.


Um longo aperto de mão em cada um, retribuídos com gestos sinceros de carinho, transmitiram-me a certeza de que estavam mesmo comprometidos. O caso estava bem encaminhado, e uma história de vida continuaria a ser escrita. O sentimento era o de dever cumprido, ainda que dali não tivesse saído nenhuma decisão, ou mesmo em razão disso.


Muito mais poderia ser dito sobre este e outros casos. Divórcios, separações, disputas pela guarda de filhos e patrimônio. Alegrias e frustrações de uma infinidade de pessoas compõem páginas e mais páginas de processos, em formas de articulados jurídicos que, em vão, procuram traduzir sentimentos.


A partir daquele dia, compreendi melhor a nobreza da função dos profissionais do direito, os quais podem muito, mas não podem tudo. Compreendi que o processo judicial é uma garantia, mas não é o único e nem sempre é o melhor meio de se exercerem e se protegerem direitos. E, acima de tudo, compreendi que a linguagem continua a ser a maior invenção de Deus para os homens, permitindo-nos que, com o diálogo, entre razão e sensibilidade, encontremos o caminho do entendimento e da paz. Aprendi que mediadores são verdadeiros mensageiros da paz.


* Dr. Cesar Cury é Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

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