Sistema multiportas, triagem e mediação
A triagem do método mais adequado para a solução de uma controvérsia é sempre um desafio para aquele que se põe a analisar um modelo multiportas[1]. Partindo da premissa de que o esforço para a solução de um conflito é obra de toda a coletividade, vez que todos devem estar empenhados na tarefa de ensinar, divulgar e esclarecer os métodos disponíveis e suas melhores práticas, vale a pena analisar, seja em um cenário multiportas, em que a solução via Poder Judiciário é uma das portas, seja em um cenário dentro de um programa de solução de controvérsias de um tribunal, quem é o encarregado de fazer a escolha do método mais apropriado e quais atributos essa pessoa deve ter.
É claro que a escolha final cabe às partes envolvidas no conflito. Entretanto, o que se quer aqui é analisar a pessoa encarregada de esclarecer a respeito dos métodos existentes e auxiliar na escolha do mais indicado, levando em conta as características do conflito, os valores e os elementos buscados pelas partes.
Por características do conflito, entenda-se, entre outras coisas, (i) a natureza do direito material envolvido (se se trata, por exemplo, de direito a respeito do qual a parte pode negociar/transigir); (ii) se as matérias envolvem mais de um assunto; (iii) se existe mais de um conflito a dirimir (policêntrico); (iv) se existem mais de duas pessoas (assim como se são físicas ou jurídicas, ou ambas); enfim, questões que tentam mapear todo o cenário.
Por sua vez, tão importante quanto isso, é identificar se as partes desejam um método que privilegie o consenso ou a solução adjudicada, se preferem um método sigiloso ou não, um método cujos custos sejam modestos, que privilegie a análise técnica, enfim, valores que as partes procuram entre os variados métodos disponíveis.
No cenário fora do Poder Judiciário, as pessoas encarregadas de fazer essa triagem são as próprias partes. Mas a melhor escolha pressupõe o conhecimento de como funciona cada método, suas características e o que cada um pode oferecer. Por essa razão é que é muito importante toda e qualquer campanha de divulgação e esclarecimento dos diferentes métodos, pois isso dá autonomia às partes na escolha. No mundo ideal, a escolha ocorreria sem o auxílio de qualquer profissional. Contudo, no mundo real, todo aquele que toma contato com o conflito (mas que não é parte) pode auxiliar nessa missão. Assim, o advogado (sim, pois, as mais das vezes, o conflito tem consequências jurídicas), mas também o administrador, o psicólogo e todo profissional que presencia conflitos em seu ambiente, deve ser dotado de noções que envolvam os métodos apropriados de solução de controvérsias, suas características e elementos em jogo em cada um.
A mudança de mentalidade que tanto se preconiza passa por essa noção. Diante de tantas opções de meios adequados, uma menção especial à mediação. Para muitos, a mediação é método padrão, tendo em vista a riqueza de características e valores da qual ela é dotada. A ponto de se dizer, no caso de disputas envolvendo direitos disponíveis: na dúvida, mediação!
Portanto, em um cenário sem o envolvimento do Poder Judiciário, em que ele é apenas mais uma porta, as partes, auxiliadas ou não por um profissional, são as responsáveis por essa triagem, lembrando que órgãos e entidades privadas ou públicas (ligadas ao Poder Executivo) também podem participar dessa ajuda.
Transpondo a questão para um cenário multiportas dentro de um tribunal, o desafio não é menor.
Dentro do pragmatismo norte-americano, a existência e a escolha do “porteiro” (gatekeeper), ou seja, do responsável pela triagem dos casos a serem submetidos a um dos Meios Adequados de Solução de Controvérsias (MASC) (ou, conforme a expressão consagrada em inglês, ADR - Alternative Dispute Resolution) é um dos segredos para o sucesso de um programa de solução de controvérsias. No ambiente institucional, essa incumbência pode ser das partes, do julgador ou de um funcionário do tribunal, ou até mesmo de alguém contratado pelo tribunal para essa atividade. Fundamental, para o bom exercício dessa função, é o conhecimento das diferentes formas de solução possíveis que o tribunal pode oferecer. Além do mais, a escolha também está relacionada com a opção legislativa de tornar obrigatória a remessa a uma das formas de ADR. Diante da realidade nacional, o mais indicado é a designação de um funcionário do tribunal especialmente encarregado de fazer esse filtro. Isso pressupõe, além do conhecimento das formas oferecidas, habilidades de mediador, já que a mediação é a forma mais corriqueira de ADR. É bem verdade que a escolha do porteiro também passa por duas questões anteriores e que também têm íntima relação com o sucesso de um programa de solução de controvérsias: a definição, por parte do tribunal, dos objetivos a serem alcançados por esse programa, e o que os litigantes podem esperar desses programas.
Na perspectiva da história, muito se caminhou nos últimos anos. Mas muito ainda existe para caminhar. Apesar dos diferentes marcos legais, o responsável pela triagem não vem merecendo a devida atenção. Da mesma forma, raros são os programas que proponham um sistema multiportas verdadeiro, isto é, com mais de uma opção além da conciliação e mediação.
Algumas mensagens a partir das reflexões acima: (i) todos têm, a seu modo e dentro de seu ambiente de convívio, o compromisso de ser um bom porteiro para o encaminhamento do meio de solução de controvérsia mais apropriado; (ii) o responsável pela triagem deve ter conhecimento básico dos diferentes métodos; (iii) no âmbito dos tribunais, é fundamental que se avance com programas piloto que privilegiem um verdadeiro tribunal multiportas, com objetivos e valores claros e predeterminados; e, por fim, (iv) embora one size does not fit at all, a mediação, por suas características, é o método padrão envolvendo direitos disponíveis, motivo pelo qual deve ser sempre uma opção em um ambiente, qualquer que seja ele, em que haja conflito a ser tratado.
[1] De forma resumida, modelo multiportas de resolução de disputas é um sistema em que cada caso em disputa é direcionado para o método mais adequado para a sua solução. Para que o caso possa ser direcionado a este modelo é preciso que o direito em discussão seja disponível, isto é, que a parte possa transacionar e até mesmo dele abrir mão. De acordo com esta ideia, cada método de resolução de controvérsia (processo judicial, arbitragem, mediação, conciliação, por exemplo) seria uma porta.
* Bacharel em Direito, Especialista em Direito Internacional, Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Membro do NEMESC - Núcleo de Estudos de Mecanismos de Solução de Controvérsias da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Membro e Tesoureiro do CEBEPEJ-Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais. Membro do FONAME - Fórum Nacional de Mediação. Advogado militante do escritório L. O. Baptista Advogados. Professor universitário.