AS ILUSÕES SERENADAS NA PARTICULARIDADE DAS NOSSAS MEDIAÇÕES
Foi preciso enlouquecer. Foi preciso redescobrir meu corpo, que a “ordem jurídica” havia cristalizado. Foi preciso resgatar, na capoeira, a flexibilidade do eros por sobre a rigidez em tânatos. Foi preciso compreender que nossas idealizações são proporcionais às frustrações; que as nossas ilusões, quando perfeccionistas, desenham a expansão das excessivas desilusões, raivas/culpas, de fundo autoritário. Foi preciso compreender que nossas castrações são preços cobrados pelo desejo narcísico por ilusões obcecadas. E que as nossas ilusões obcecadas, quando serenadas, permitem-nos metamorfosear a solidão das relações periféricas em solitude; onde encontramos - pelo resgate afetivo da nossa própria empatia - a condição necessária à tolerância, à alegria e à ecologia profunda, onde fundimos os horizontes existenciais conosco e com os outros; no mundo das nossas relações.
Sim. O dogmatismo do direito tributário deixara-me vazio nos anos noventa do século passado. A cura foi psicossomática. Precisei migrar para mim mesmo e para o aprendizado da mediação dos nossos vínculos e conflitos. Foi preciso entender como somos continuidade da nossa espécie ancestral, e que essa ancestralidade está, toda ela, consoante sua filogenética, desdobrando-se na originalidade única de cada um de nós e na ambiência cultural, linguística, da contemporaneidade compartilhada. Eu estou aqui e com vocês, em continuidade; que segue, portanto, enquanto acontecemos. Estou sendo enquanto aconteço no pulsar de uma existência em revezamento imemorial, que se faz na fusão dos múltiplos horizontes existenciais. Tem sido preciso compreender o fenômeno histórico-evolutivo do “homo sapiens”, que inventa e compartilha a intencionalidade das suas realidades imaginadas. Desde sempre o excesso e a escassez constituem aquilo que consideramos imoral ou diabólico; qual seja, aquele estado de ansiedade/fobia que nutre a falta de limites; as tiranias, enfim. Desde sempre foi necessário o caminho do meio; a mediação entre cidadãos com autonomia e em condições de igualdade.
Foi preciso resgatar uma hermenêutica alargada pela consideração da concretude dos nossos vínculos; para ultrapassar o ethos racionalista da modernidade, e seus programas normativos iluministas, universalistas, positivistas, deontológicos; fantasmas linguísticos que estão por aí; significantes de uma ordem simbólica, coativa, que nos serve de chão ao imaginário estabilizador. Sempre precisaremos ultrapassar os limites desse “constitucionalismo simbólico”, sem negar, entretanto, que a necessidade da orquestração estatal é algo que se deve reconhecer.
Com efeito, pudemos perceber que tais significantes linguísticos ainda não são os significados “in fieri” dos nossos conflitos quotidianos; porquanto apenas representam simbolizações coativas de consensos possíveis, formalizados mediante leis abstratas, num instante que já passou. Mediadores de conflitos dessa hermenêutica alargada andam pelos caminhos dos significados em construção, ali onde a vida pulsa na transdisciplinaridade, onde os desejos meus e seus colidem, os sentimentos incidem, os contrários e estranhos se reconhecem, os amores partem, despedem-se, perdoam, restauram-se, agradecem. Andamos aqui pelo mundo da vida, por onde a semiótica de um direito fenomenal se expressa no âmbito da dimensão compreensiva, particular, sistêmica, multidisciplinar e ecológica da dignidade humana.
Mediadores não desconhecem o positivismo jurídico, porque – como numa bíblia laica - reconhecem a necessidade desse programa normativo, desse reducionismo, dessa âncora que nos amarra ao porto de uma viagem já feita. Mas o direito não se resume a essa “pret a porter”. A viagem dos que se reconhecem imperfeitos está num fenômeno jurídico que se faz elástico e mutante, no âmbito normativo da própria vida conflituosa; preço que pagamos pelas nossas precárias autonomias democráticas. Nós, mediadores, facilitamos diálogos co-construídos, consoante o método da nossa linguagem ordinária. É ali onde trafega o campo de desejos pessoais, familiares, comunitários, profissionais e políticos; disputados e compartilhados na economia dos diferenciados poderes e interesses.
Porque nós, mediadores, não nos bastamos fincados no simbolismo de uma ordem já existente, porquanto nos cabe facilitar o labor dialogal, quase sempre incerto, das questões, sentimentos e interesses reconhecíveis e reformuláveis pelos participantes voluntários de um processo construtivo e transformador.
Mediador anda por onde a arte prevalece como expressão do cuidado, ao esmero de técnicas necessárias às mais belas e improváveis interpretações, compreensões e aplicações. Não há arte sem amor, enfim. Um dos movimentos da sinfonia desses aprendizes é a atitude de acolhimento, o rapport, com técnicas de afago, silêncio, normalização, conotação positiva, etc.
Outro movimento dessa improvável sinfonia está na arte da escuta-ativa, aquela do observador proativo; que se concentra no horizonte do outro, desvelado em camadas, pela intuitiva linguagem das expressões corporais e na linguagem articulada das falas. Para tal movimento demanda-se a técnica da observação meditativa do aqui e agora dessas trocas de mensagens e suas realimentações. Pois escuta ativa não se confunde com silêncio. Neste, o mediador será compassivo em respeito à conversa do mediando consigo mesmo; naquela, o mediador mergulhará, ativamente, com o olhar na face e no mundo da narrativa escutada.
Mediador segue, em seu ofício amoroso, por improváveis acordes, com o movimento das perguntas sem pré-julgamento; porque este movimento, somado aos anteriores, desvela a circularidade recursiva das mensagens retroalimentadas. Técnicas circulares de vinculação das perguntas ao que foi ativamente escutado - e, portanto, perguntas que pegam carona no universo dos conteúdos reveladas pelos mediandos - deverão prevalecer sobre aquelas extraídas da imaginação desse maestro aprendiz, cuja partitura se faz ao sabor dos corpos narrativos daqueles protagonistas em colaboração.
Para que a música toque, seus acórdãos precisarão acolher indagações para esclarecimentos ou para contextualização/reflexão sobre as narrativas. Afinal, cada novo movimento resultará daquela co-construção de novas histórias, novas compreensões, novos acordes. A arte dos mediadores não comporta julgamentos, não busca culpados ou inocentes, não cogita sobre verdades ou falsidades. Nessa precária sinfonia, a boa-fé sempre será uma possível construção daqueles que se escutam; sensibilizados por novas compreensões.
Ocorre que esta sinfonia, inspirada na ética de alteridade, busca ensejar o equilíbrio, o asseguramento de uma alternância de escutas e falas, ao ritmo das equidistâncias e das necessidades reais dos mediandos. Aqui a arte está na justiça de trato gentil, compartilhada equitativamente.
Ainda sobre a arte mediativa, outro movimento dessa sinfonia inacabada convida à priorização das questões relacionais; porque, ao semear os caminhos que se descortinam, as relações humanas conflituosas costumam colonizar as questões materiais, objetivas, também presentes e relevantes. Nossas raivas não são dos outros; são expressões das frustrações que nós próprios acumulamos vida afora.
Na imponderável sinfonia mediativa, outro movimento deve ser destacado: a validação de sentimentos, com empatia. Porque aqui não há freios impostos aos praticantes. Os andamentos são articulados à revelia do suposto maestro. Os sentimentos são acolhidos sem reatividades. O drama é enriquecedor. A técnica aqui é a da verificação. Está bem assim para vocês? Que tal combinarmos algo? Que tal ensaiarmos os instrumentos em separado? Que tal a simulação de uma troca de papeis?
Eis, enfim, outro movimento dessa improvável sinfonia. Sempre haverá a possibilidade das dissonâncias, dos desafinamentos, das cordas quebradas, da rouquidão. Ali uma bossa-nova pode pedir passagem, na reformulação de mensagens ofensivas. Técnicas serão então postas em prática. Reformula-se afirmativamente, reformula-se por indagação e reformula-se por espelhamento. O que pretende o maestro com essas técnicas? Ajudar o aprendiz desafinado em meio ao medo/raiva a compreender quais são os seus verdadeiros objetivos e interesses, para que se habilite a afinar o instrumento, “de dentro para fora, de fora para dentro”.
Quantas vezes, mediando por aí, tive a ventura de escutar frases agradecidas como esta: “Há anos eu desejava ter a oportunidade de dizer tudo o que pude finalmente falar nesta mediação. Estou aliviado. Conseguimos! Mas o que realmente me deixou impressionado foi quanto eu nunca havia podido escutar aquelas revelações que mudaram as nossas atitudes”.
Hoje compartilhei com vocês algo do que singelamente tenho compreendido em minhas andanças de mediador. Tal como prelecionou Warat, “conceber a estética como epistemologia (vista como estilística da existência), significa, para o sujeito, o reconhecimento de sua feminilidade, ao tornar possível um discurso singular de alteridade (com o outro) sobre o mundo, e a perda definitiva da crença em enunciados universais”.
A nossa realidade imaginada pode libertar-se, pois, das promessas de perfeição de utopias universalistas. Basta que essas nossas inevitáveis intencionalidades possam descortinar, na singularidade com o(s) outro(s), diferentes modalidades eróticas, dialógicas, que permitam experiências de criação. Essas experiências; enfim, as aplicações das artes e técnicas da mediação, ocorrem na particularidade de uma estética da empatia; capaz de serenar as ilusões e as desilusões dos vários “iluminismos”.
Paixão alguma produziu amor enquanto esteve desconectada dessa singular estética da serenidade. Sinfonia inacabada; pois nossa partitura é o entendimento pelo caminho.
*Carlos Eduardo de Vasconcelos atua como mediador, árbitro, advogado e palestrante. É autor, dentre outras, da obra Mediação de Conflitos e Práticas Restaurativas, 6ª ed. São Paulo, Método, 2018. É mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Foi vice-presidente e diretor de mediação do CONIMA. É professor de hermenêutica jurídica, mediação, arbitragem e práticas restaurativas. É Conselheiro da OAB e do ICFML. Integrou a Comissão de juristas, no âmbito do Ministério da Justiça, que elaborou anteprojeto da Lei de Mediação, no Brasil. Com experiência internacional, comunica-se em várias línguas.