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E quando um mediando não entende o que o outro diz?

O que podemos fazer quando os mediandos não conseguem, literalmente, entender-se?


A mediação nos permite ter contato, como observadores, com muitas histórias, às vezes até parecidas, mas que sempre guardam suas especificidades, suas particularidades, suas diferenças.


O fato de o Brasil ser um país imenso e, ainda, recordista no quesito de má distribuição de renda, faz com que nos deparemos, contudo, com uma característica bastante comum na mediação: o desequilíbrio de conhecimento entre os mediandos.


De fato, não é raro que encontremos participantes da mediação com níveis bastante diferenciados de conhecimento geral, de entendimento sobre as questões referentes aos temas tratados, ou que atuem num jogo de poder baseado na diferença até de capacidade intelectual.


E também é triste perceber que muitos desses casos ocorrem em relações familiares em que maridos vivem, durante o casamento, grande ascensão social e cultural, enquanto suas mulheres, por imposição ou composição entre eles, deixam de estar no mercado de trabalho e acadêmico para cuidar da vida da casa e dos filhos, sem a possibilidade de gozar do mesmo crescimento.


Isso também vi, de modo parecido, numa disputa entre irmãos, relativa à herança de seus pais, onde uma das irmãs tinha essa condição descrita de mulher que optou pela vida da família, enquanto os demais irmãos e irmãs buscaram e alcançaram sucesso profissional. Mas essa diferença, no caso de irmãos, dá “pano” para uma outra história...


Em todas essas situações em que há grande diferença no nível intelecto-cultural entre os envolvidos, o mediador tem algumas tarefas a desempenhar, em função de seu papel de facilitador de comunicação. Afinal, para facilitar o diálogo entre as pessoas, é necessário que as mensagens sejam enviadas e recebidas de maneira adequada, de modo que possam ser compreendidas, elaboradas, contestadas, questionadas, como quiserem aquelas pessoas.


Em mais de um caso de divórcio deparei-me com uma mesma situação: um casal de origem simples, que optou, com a chegada dos filhos, que a mulher cuidasse pessoalmente da educação daqueles, abandonando carreira anterior, e ao mesmo tempo dando o suporte material e moral necessário para que o marido continuasse sua carreira de sucesso. Nessas situações, vi histórias em que esse sucesso foi realmente espetacular, o que possibilitou uma grande ascensão sociofinanceira da família como um todo. Esses maridos podem ter se tornado CEO´s de grandes empresas, terem galgado carreira acadêmica, com titulação obtida até em outros países. Mas suas companheiras não saíram da situação cultural inicial, apesar de as finanças terem deixado de ser um problema.


Quando chega na hora de falar de dinheiro, essa diferença se torna visível. Muitas mulheres não sabem quanto dinheiro a família possui, de que forma está aplicado, quanto somam os gastos mensais do núcleo familiar. Não têm acesso e não conhecem operações bancárias, planilhas, gráficos, aplicações, ações etc.



Um dos recursos sempre possível é que essas pessoas recebam o suporte de informações de um especialista em finanças, um consultor financeiro, que possa com elas decifrar a sua situação atual, os cenários futuros e suas possibilidades de escolha. O uso do consultor sempre se mostra muito útil nos processos de tomada de decisão, como um agente de realidade precioso para as pessoas menos iniciadas no mundo financeiro. Sempre foram, para mim, experiências de conforto no trabalho, a partir do momento em que as pessoas envolvidas também começaram a sentir-se mais confortáveis com a situação. O desconforto, porém, que percebo mais nessas situações, é o momento da apresentação de dados, informações, em mediação, de um mediando ao outro.


Já vivi a situação de mediar um casal em que o homem possuía alto cargo no mercado financeiro. O seu conhecimento sobre custos, gastos, redução de despesas, era incontestável, e ele falava com extrema desenvoltura sobre o tema, apresentando números e argumentos numa linguagem bastante profissional. Eu, focada, extremamente interessada no que ele dizia, fui seguindo seu raciocínio de maneira a entendê-lo. Mas, quando olhei para a mulher, percebi nela um olhar de pânico, que combinava com uma série de rabiscos que ela fazia numa folha de papel em que tentava anotar as informações. Claro, o seu patrimônio e sustento de seus filhos era o que estava em jogo ali.


O que fazer nessa hora? Para mim era óbvio que ela precisava receber a informação naquele momento, de forma inteligível. E para isso percebi que havia muitas opções. Eu poderia parar tudo por ali, e indicar um consultor para traduzir tudo para ela. Eu poderia deixar que ela perguntasse ao seu marido, ou poderia mesmo questionar o seu entendimento de forma a explicar para ela o que ela não tivesse compreendido. Só que, então, percebi que isso seria “um prato cheio” para ele, que sempre questionava sua capacidade e inteligência. Detalhe: ela era uma mulher extremamente inteligente, mas cujo foco na vida era o de estudar com seus filhos de forma a auxiliá-los a pleitear bolsa e fazer faculdade fora do país. Nunca tinha tido acesso àquele tipo de informação ou linguagem.


Se eu pedisse para que ele repetisse a explicação para ela, estaria diminuindo-a perante o marido, no mesmo formato como aquele sistema costumava funcionar. Mas percebi que ela, por si, não perguntaria nada: não se diminuiria, mas também não entenderia nada, porque sabia que seria ridicularizada naquele momento que já era difícil pelo divórcio em si. Então me ocorreu fazer eu mesma a questão a ele, de modo a não demonstrar a ele de quem era a dúvida, se minha ou dela, para que ela recebesse a informação de um jeito ou de outro, enquanto ele explicava novamente os dados para mim. Ou seja, não deixei claro quem não havia compreendido, só pedi a ele que explicasse novamente, exclamando: “nossa, isso é mesmo complicado! Você poderia explicar mais uma vez para eu ter a certeza de que tudo ficou compreendido?”


Claramente ele explicou. Deve ter tido dúvidas sobre quem entendeu ou não, mas, para não correr o risco de ofender-me, ele também não disse nada que diminuísse a ela. De fato, ela havia entendido pouco, e, ao ouvir-me fazendo aquela ponderação, respirou aliviada e sentiu-se confortável para reforçar que ela também precisava de mais informações, sem desconfortos.


Moral da história: pouco importa se ele me achou menos ou mais inteligente, não era isso que estava em jogo. O fato é que a informação foi por ele mesmo traduzida de modo mais fácil, de tal sorte que todos saíram conscientes do que havia sido dito. E o objetivo da imparcialidade preservado, já que a informação ser entendida era importante para ambos, e uma nova discussão não ajudaria nenhum dos dois.


É preciso estar atento ao que os demais estão sentindo, como estão compreendendo, e, porque não, dizer pelo outro algo que talvez o constranja e que exatamente por isso poderá ficar sem ser dito. Sem colocar os mediandos em “saia justa”, temos o dever de colaborar para que se esclareça o que é fundamental para que a decisão tomada seja consciente e, portanto, válida.


Uma vez ouvi o mediador americano Gary Birnberg sabiamente dizer que o mediador é como um pato que, aos nossos olhos, nada sem esforçar-se, porque não somos capazes de ver como bate seus pés desenfreadamente embaixo d’água. Esse trabalho que fazemos, invisível aos olhos dos mediandos, de “ler” aquela situação e mentalmente optar por estratégias em determinadas condições, em frações de segundos, exige atenção, escuta ativa, experiência e uma certa dose de intuição. E a liberdade de poder tentar de novo, de uma outra forma, da próxima vez...


Sandra Bayer é mediadora de conflitos e professora universitária. Advogada de formação, é bacharel, mestre e doutoranda em Direito pela USP. Mediadora desde 2002, possui ampla formação na área, inclusive pós-graduação pelo COGEAE da PUC/SP. É certificada pelo ICFML, sócia do Instituto D'accord e mediadora em câmaras privadas.

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