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Meus filhos praticaram bullying¹

Renata, como ela mesma me revelou, escreve, de um ‘fôlego só’, sobre um acontecimento ‘corriqueiro’ pelo qual passou, do dia a dia de tantas pessoas e que pode causar mal estar e sofrimentos a quem os vivencia e que, muitas vezes, por diferentes razões, deixa-se de cuidar dos sentimentos que produzem e das ‘marcas’ que perduram.


Só que Renata não deixou passar, sem saber ao certo o resultado que iria produzir, acreditou (e acredita) ser possível buscar com as pessoas envolvidas algo que faça um sentido diferente em prol de uma convivência mais ‘gostosa’, mais alegre, mais colaborativa, respeitosa e libertadora de preconceitos e julgamentos. De forma interessante e com leveza, identifica nos diálogos estabelecidos diferentes ferramentas que costumam ser utilizadas no procedimento de uma mediação, ao mesmo tempo em que demonstra, com naturalidade, como é possível utilizá-las nas conversações habituais.


Vamos à experiência vivenciada pela Renata


Fui levar meus filhos, Caio e João², ambos de 4 anos, na escola. Chegamos um pouco antes do horário e, o portão ainda estava fechado. Francisco, amigo da turma deles já estava por lá e logo veio o Tiago, e, em seguida a Duda, com a mãe dela. O Caio exclamou: “Duda é doida!”, “Duda é doída!” e, quando vi, todos estavam em roda repetindo, em coro, a mesma frase para ela. Fiquei paralisada!


Nem conseguia olhar para a outra mãe, que também ficou imóvel diante da situação. A menina calou-se, com cara de triste e sem saber o que fazer. Eu acabei falando, para descontrair: “Duda é doída por chocolate” e eles continuaram falando ao mesmo tempo: “Duda é doida!”, “Duda é doida”, e eu: “Duda é doida por sorvete”. Já nem sabia mais o que dizer ou fazer, e continuava sem olhar para a outra mãe. O portão abriu e... Ufa! Todos entraram na escola!


Alívio momentâneo... Depois fiquei me questionando, como eu, uma mãe mediadora, que participa de grupos de estudo em mediação, facilitação de diálogos e comunicação não violenta, pude deixar aquilo acontecer, bem na minha frente, com meus filhos e ainda fazer brincadeira para descontrair numa hora tão delicada? Devia ter interrompido, levado os meninos para um canto, conversado e até mesmo pressionado para que pedissem desculpas, enfim, muitas coisas me passaram pela cabeça e não podia, não queria deixar que ficasse daquele jeito.


Enviei, então, uma mensagem por whatsApp para a mãe da Duda. “Olá Roberta, não gostei da forma como os meninos falaram com a Duda hoje na porta da escola. Vou conversar com eles sobre o episódio. De qualquer forma, gostaria de lhe pedir que se, por acaso, acontecer algo desse tipo de novo que você me informe. Bj.”


Ela não demorou, e respondeu: “Não se preocupe, meninos são assim mesmo, um começa e os outros imitam. Eu só fiquei preocupada com a Duda, mas acho que ela tirou de letra, pois tem dois irmãos mais velhos. Muito obrigada pelo carinho!”


O próximo passo era falar com eles. Mas como? No dia seguinte ao buscá-los na escola estavam calmos. Chegando em casa, pedi para sentarem no chão de forma confortável e logo tiraram os tênis. Peguei o laptop e eles pediram para desenhar, disse que depois da nossa conversa poderiam fazer um desenho. Dei um google no significado de doida:


“...A palavra doida é o termo usado dentro da língua portuguesa para descrever uma pessoa que tenha desequilibradas suas faculdades mentais... é o indivíduo que sofre uma doença de insanidade ou aquilo que envolve um desequilíbrio mental e que faz com que o indivíduo sofra de diferentes sintomas...”³


Claro que eles nem me deixaram terminar de ler!!! Relembrei, então, a situação da Duda, as pessoas que estavam envolvidas(mapeamento do conflito). Repeti a frase dita por eles algumas vezes (parafrasear) e perguntei como eles se sentiam. E como se sentiriam no lugar da Duda (criar um contexto para fazer perguntas reflexivas e ‘visitar o lugar do outro’). Começaram a perder o interesse e a ficar irritados.


Tinha que ser algo que conectasse com a linguagem infantil. Mas o quê? E tinha que ser rápido! Voltei de pronto ao teclado do computador e na página de pesquisa de imagens, a primeira figura com a qual me deparei onde estava sinalizado “frases sobre louco”, sem conjecturar se era a mais, ou menos adequada (em amplo sentido), mostrei a eles.



https://www.mensagenscomamor.com/busca?q=+doida

João ficou olhando e disse: “Tira mamãe! Estou com medo.” Caio olhou rapidamente e saiu. Eu disse: “Por ora tá bom, mas quero que vocês pensem como a Duda pode estar se sentindo. Se vocês estivessem no lugar dela, o que gostariam que ela fizesse? O que podemos fazer para consertar essa situação?”. Fizeram os desenhos na tela, como havíamos combinado. Tomaram banho, jantaram e Caio foi ao meu quarto.


“E aí Caio, pensou na questão da Duda? O que você pretende fazer?” Enviar uma mensagem por áudio? Chamá-la para vir aqui em casa? Ligar para ela?” (brainstorm) “Mamãe quero ligar.” (autoria na decisão)


“Você já sabe o que vai dizer para ela?”

“SIM”

Ligamos, mas não atenderam. Ele quis enviar mensagem por áudio. “Duda, eu não vou mais chamar você de doida. Você tem como me ligar pelo vídeo? Desculpa!”


Logo depois, a mãe de Duda ligou pelo vídeo e ambas começaram a conversar com o João. Caio se juntou e os três ficaram conversando sobre o que estavam fazendo. Ouvi Caio falar rápido e baixo: “Duda não vou mais chamar você de doida (intervalo), desculpa!”. Ouvi, também, a mãe de Duda dizer ao fundo: “que fofo!”. Em seguida eu disse: “Duda, gostamos muito de você. Vamos marcar de você vir brincar aqui em casa?”


E as três crianças ficaram falando sobre os programas que estavam vendo na TV e depois os meninos se despediram da Duda com alegria. Dei um abraço nos dois e disse que estava muito, muito orgulhosa deles. E a noite terminou assim...


O que eu senti? Uma mistura de alívio, dever cumprido, mas acima de tudo: ter conseguido mediar um conflito (que acontece no nosso dia a dia e tantos ‘estragos’ pode causar na vida das pessoas envolvidas) e as próprias crianças terem conversado e construído uma nova relação entre elas.


Renata Pessoa – Facilitadora de diálogos e Advogada

¹Bullying – Compreende todas as atitudes agressivas, intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudantes contra outro(s), causando dor e angústia, e executadas dentro de uma relação desigual de poder, tornando possível a intimidação da vítima. NETO, Aramis A. Lopes, SAAVEDRA, Lucia Helena. Diga NÃO para o Bullying! Programa de Redução do Comportamento Agressivo entre estudantes. Realização ABRAPIA. Patrocínio PETROBRAS. Rio de Janeiro, 2003, p. 17.


²Os nomes utilizados neste texto são fictícios.


³https://oquee.com/doida/









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