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Uma estória que fala de amor. E da falta dele também

Era uma quarta- feira como tantas outras.

Naquela sala de audiências, éramos 4. Uma Juíza, um Promotor de Justiça e duas Defensoras Públicas.

Terminada a primeira audiência, como de costume, olho para a pauta a minha frente, e vejo que a próxima seria uma audiência de Adoção.

Sempre me emociono nessas audiências, seja quando atuo pelos Autores seja quando represento os interesses dos pais biológicos da criança a ser adotada. Eles algumas vezes concordam com o pedido, outras vezes, não.

De uma forma ou de outra, é inevitável. Adoção mexe comigo.

Mas ninguém em tempo algum poderia imaginar o que aconteceria nas próximas horas naquela sala de audiência. Nenhum de nós e acredito que nenhum de vocês conseguiria ter a dimensão do que estava por vir.

A Juíza nos pede um pouco de paciência pois a audiência iria atrasar um pouco.

“Temos que esperar o carro da SEAP chegar. A Ré deste processo de Adoção é uma presa e está vindo para cá “

Dirijo- me, então ao casal que aguardava a audiência num banco do corredor do fórum. Sorridentes, abraçavam- se afetuosamente.

O casal emanava afeto, luz e bondade.

Era genuíno, bastava, simplesmente, olhá-los.

“S. João e D. Marlene, boa tarde. Sou, Dra Larissa, a Defensora Pública que os acompanhará na audiência. Peço que tenham um pouco de paciência porque estamos esperando a Ré chegar. Vocês sabem né, que ela , na condição de mãe biológica , tem o direito de ser ouvida e participar deste processo”

“ Boa tarde Dra . Larissa , muito obrigada por nos avisar . Só estou preocupado com o horário de buscar a Helena na creche. Sabe como é né, se a gente demorar ela pode achar que a esquecemos lá. Deus me livre. Já imaginou doutora”

Enquanto aguardávamos, para tentar descontrair um pouco e passar o tempo, passei uns cinco minutinhos ali ao lado daquele casal – fofo- perguntando um pouco sobre eles e, claro, sobre a filha deles , Helena.

Foi a chance que aquele simpático senhor teve para me mostrar, orgulhoso as fotos de Helena, enquanto falava:

“ Ah, Dra ...Helena é nossa filha. Nossa princesa. Nossa vida. No próximo mês, ela completa 6 anos, mas a bichinha é muito esperta, muito inteligente . Está muito bem na escola, é comunicativa, feliz e enche nossos dias de muita alegria.”

Eu não precisava de mais nada.

Processo estava pronto para julgamento, situação mais do que consolidada. S. João e D. Marlene eram sim os pais de Helena e ai de quem tentasse atravessar o “nosso “caminho, eu pensava.

Todos os estudos feitos e realizados, eram amplamente favoráveis a Adoção , agora era só cumprir o protocolo e seguir rumo a sentença definitiva que faria com que Helena fosse, finalmente, na certidão de nascimento , filha de S. João e D. Marlene.


O caminhão da SEAP chega ao Fórum, trazendo Luana que, ato contínuo, adentra a sala de audiência algemada.

Luana vestia uma camiseta de malha surrada, na cor verde (seu uniforme de presidiária) , era uma jovem , negra , magra, usando óculos e que aparentava pouco mais de 25 anos . Esta era Luana, mãe biológica de Helena.


Diferente da atmosfera sorridente do casal de adotantes lá fora, o clima dentro da dala de audiências não era dos melhores.

Luana mostrava-nos uma face sombria – tinha um olhar distante que trazia consigo as marcas evidentes da vida de uma presidiária que já cumpria sua pena há mais de 4 anos.

Atendendo a um pedido das Defensoras, a Juíza autorizou que as algemas fossem retiradas de Luana. Ufa. De fato, ali elas não se faziam necessárias. Luana era a fragilidade em pessoa, estava longe de apresentar algum perigo.


Luana, então, prestaria seu depoimento sem a presença de S. Jorge e D. Marlene que continuariam nos aguardando do lado de fora.

Iniciado seu depoimento, aquela jovem mal nos dirigia seu olhar, estava distante e aparentando, até certo ponto, frieza.

Ao ser indagada sobre os motivos de estar ali, ela respondia de maneira evasiva que não tinha certeza do que se passava, mas desconfiava que era por causa de sua filha Helena.

Com delicadeza, a Juíza lhe explicou que o processo tratava- se de um pedido de Adoção de um casal que já estava há mais de 5 anos com Helena, e que era preciso que ela se manisfestasse sobre isso.

“ Dra, eu não vou abrir mão da minha filha. Não tenho pai, não tenho mãe, eu só tenho a Helena”

Silêncio .

“Mas, Luana , ponderou a Magistrada, Helena estava num abrigo com pouco mais de dois meses de idade , depois da sua prisão por tráfico de drogas .

Esse casal ,que já aguardava na fila de Adoção, iniciou o procedimento para que Helena saísse do abrigo e recebesse um lar, onde seria cuidada e amada por eles. Acredite, sua filha sempre esteve e está muito bem.”

Pausa.

Não podemos negar que o que todos nós fazemos, mesmo que inconscientemente é julgar. Pré-julgar, eu diria. Nós tendemos a apontar o dedo para o outro, vestidos com nossas capas da moralidade, dos nossos valores e dos nossos preconceitos.

Ali, Luana recebia mais uma condenação. A moral.


“ Que tipo de mãe é essa? Que tipo de mãe iria para a rua vender ou repassar drogas com um bebe recém nascido ? Que absurdo, pensávamos. Onde esse mundo vai parar ...

Eu hein, tem mais é que perder mesmo a sua filha e nunca mais ter contato com ela. “


A Juíza encerra suas perguntas , cumprido seu papel de colher o depoimento da Ré e passa a palavra ao promotor de Justiça que inicia suas perguntas para a ré.

“Luana, me diga, por favor algumas coisas :

· a sra é usuária de drogas?

· a sra tem bom comportamento na cadeia?

· a sra portava arma de fogo no momento da sua prisão?

· a sra se arrepende do que fez?

· a sra tem vontade de sair da prisão e mudar de vida?

· a sra quer saber como está sua filha Helena?

· a sra quer ver uma foto dela?

· a sra durante todos esses anos, tentou noticias dela, escreveu cartas para sua filha?

· a sra deseja reconquistar o amor de sua filha?

Depois de todas as respostas, Luana afirma categoricamente:

“Desculpem – me, mas eu não concordo com a Adoção de jeito nenhum porque eu estaria abrindo mão da única coisa que me resta e me mantém viva.”

Neste momento, a atmosfera naquela sala de audiência já mudara.

Os olhares sobre Luana já não eram mais tanto de julgamento, nascia ali a atmosfera da compaixão, os olhares já eram trocados entre nós de outra maneira.

Ali na nossa frente, não estava mais uma ré – presa – diante de nós, estava apenas a jovem Luana , uma mãe que foi separada de sua filha quando esta tinha pouco mais de dois meses. Uma mãe que há mais de 4 anos estava presa e durante todo esse tempo, não recebera uma só visita, uma mãe que não conhecia sua filha.

A estória dela e sua defesa intransigente para não perder sua filha, nos comoveu. Essa é a verdade.

Alguma coisa ali mexeu com todos nós.

Pensamos todos juntos no que aconteceria se conseguíssemos promover um encontro entre Luana, S. João e D. Marlene. Como seria se eles se olhassem, se conhecessem e se ouvissem....

Empatia.

Enxergar o mundo sob a perspectiva do outro.

Essa estória não termina aqui, voltarei em breve para terminá-la de contar deste exato ponto onde parei.

Prometo.

Até lá , gostaria que cada um de vocês deixasse a imaginação fluir e fizessem um brainstorming comigo, me dizendo como se sentiriam no lugar de cada um deles, como foi para vocês, ouvir essa narrativa até aqui e para aqueles que quiserem arriscar, deixem um palpite de como tudo isso acabou , se é que acabou mesmo não é...


Ah e para aqueles amigos que já contei o final da estória, nas palavras da minha filha Juju, eu lhes peço : sem spoiler hein =)

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