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Crônica de uma mãe mediadora

Oi, pessoal! Entrem logo, estamos atrasadas!

Andrea, no volante, abriu a porta do carro para suas duas filhas e para D. Zuleika: ia levar as crianças para a aula de inglês e dar uma carona para sua mãe, que ia encontrar as amigas.

Marina, a filha mais velha, de 10 anos, entrou no carro afoita: “mãe, você não sabe o absurdo que aconteceu hoje na escola!”. E contou a seguinte história, resumidamente: uma das professoras entregou a prova e, como sempre acontecia, passou a fazer a correção oral em sala de aula. Quando terminou, dois colegas que tinham recebido a nota máxima avisaram a professora que, ao corrigir suas provas, ela havia dado como correta uma questão que estava errada. A professora disse então que não tiraria os pontos daquela questão e que manteria a nota. Um outro colega reclamou, pois não achava justo alguém receber os pontos de uma questão cuja resposta estava incorreta. A professora, então, mudou de ideia e afirmou que iria tirar a pontuação dada equivocadamente. Mais tarde, em mais uma reviravolta, a professora informou que não teria como tirar os pontos dos alunos, pois o boletim já estava sendo impresso.

Durante toda a narrativa de Marina, a avó Zuleika e a irmã Luciana reagiam com apoio e solidariedade: “que absurdo!”; “você precisa fazer alguma coisa!”; “ainda bem que não é minha professora!”.

Marina terminou a história com um desabafo exaltado e ofegante: “mãe, isso não é justo!”.

Filha, o que você achou injusto?” - pelo clima do carro, Andrea sentiu imediatamente que não era essa a resposta que Marina e as outras caronas esperavam.

A menina, decepcionada por não ter recebido o imediato apoio da mãe, respondeu que não achava justo que os colegas recebessem pontos por uma questão que erraram, ainda mais quando outros alunos, inclusive ela própria, também tinham errado a mesma questão e não receberam a pontuação.

Filha, a primeira coisa que me veio à mente quando você estava me contando a história foi quando, no ano passado ano, você chegou em casa toda orgulhosa porque a professora tinha errado a correção da sua prova, você avisou isso a ela e ela disse que, pela sua honestidade, iria manter a nota...

Mas era diferente!

Por quê?

A resposta veio ‘vomitada’ e pouco convencida: “Porque eu não tinha gabaritado e eles, agora, gabaritaram”.

Então o problema para você é a nota dos amigos ou é a justiça ou não de se dar pontos por uma questão errada? É uma questão de competição então?”.

Os olhos de Marina se encheram d’água, mas Andrea, preocupada em educar a filha e sem conseguir conectar-se com os sentimentos da menina, continuou: “Então, quando aconteceu com você, tudo bem, não foi injusto, mas, quando acontece com seus amigos, não pode? E se a professora também estivesse premiando a honestidade deles, como aconteceu com você antes? Talvez esses seus colegas, se soubessem do que aconteceu com você, achassem também injusto eles perderem os pontos da questão agora...

Marina, muito mobilizada, começou a repetir seus argumentos em looping. Luciana, a caçula, estava ficando tensa com o rumo da conversa. Andrea percebeu finalmente que precisava mudar de abordagem.

Filha, é uma situação muito difícil. Não estou dizendo que você não deva se sentir injustiçada. O sentimento é seu e ninguém pode dizer que você não está sentindo ou que está errada em sentir. Eu não sabia muito bem o que falar, então dividi contigo a primeira coisa que veio à minha cabeça, para que você pudesse olhar a situação com outros olhos, se colocando no lugar dos seus colegas e da professora, inclusive porque você já havia passado por uma situação muito parecida. Por que a professora resolveu deixar os pontos quando foi avisada? Será que foi para ‘premiar’ a honestidade? Isso seria justo? Você conversou com a professora sobre seu sentimento de injustiça? Pelo jeito, isso é algo que acontece com alguma frequência na escola, então é importante que vocês conversem sobre isso e combinem o que deve ser feito quando ocorrer. Acho que a professora ajudou a fazer a confusão ao mudar de opinião tantas vezes. Talvez ela precise de ajuda e esta pode ser uma oportunidade para vocês conversarem sobre algo que volta e meia acontece, evitando, daqui para frente, novos sentimentos de injustiça ou novos embates entre os alunos”.

Mas, mãe, eu não quero combinar nada com ninguém! A escola é que tem que dizer o que é justo!

Má, mas pode ser que o que é ‘justo’ para a escola, não é o ‘justo’ para você e sua turma, de modo que o seu sentimento de injustiça poderá persistir. Ao passo que, se vocês construírem em sala de aula, juntos, alunos e professora, o que é ‘justo’ nessa situação, a chance de acontecer algo que cause sentimento de injustiça diminui muito... A justiça não é um conceito pré-determinado, igual para todo mundo”.

Não quero mais falar sobre isso! Você nunca me apoia!

Finalmente, Andrea parou o carro em frente ao curso de inglês.

Podemos seguir essa conversa mais tarde? Pego vocês no final da aula!

Assim que as meninas desceram do carro, Andrea, com o peito apertado e sentindo que a conversa havia desandado, perguntou para sua mãe o que ela tinha achado da sua intervenção.

Achei interessantes os pontos que você levantou. Fico feliz por você se preocupar que as meninas sejam justas e éticas. Mas acho que, antes da sua mensagem, Marina estava precisando era de um ‘colinho’...

A fala da mãe teve um efeito avassalador sobre Andrea. Mesmo fazendo todas as ponderações – por vezes duras - que achava necessárias, percebeu que deveria antes ter acolhido sua filha. Isso não só aproximaria as duas, mas também permitiria que Marina escutasse melhor as colocações da mãe e que, numa próxima oportunidade, voltasse a compartilhar seus sentimentos...

Essa história aconteceu exatamente desse jeito, com uma mãe que também é mediadora e que, como tantas mães, procura oferecer a suas filhas as ferramentas que acredita que as auxiliarão a lidar melhor com o mundo.

A conversa de Andrea e Marina nos provoca inúmeras reflexões. Ela nos fala da importância do acolhimento inicial dos sentimentos das pessoas em conflito – da conexão e da empatia que abrem caminho para uma escuta de qualidade e para a reflexão. Fala também sobre a influência da rede social no conflito - Luciana e D. Zuleika, ao apoiarem de maneira tão enfática e sem questionamento a revolta e a dor de Marina, sem querer acabaram inflando seu sentimento de injustiça. Fala do estranhamento gerado pelo ato de, em uma conversa, simplesmente perguntar no lugar de vir com respostas prontas, o que permite que se façam reflexões. Fala da possibilidade do conflito funcionar como algo construtivo. Fala da importância de que nossos filhos aprendam a expressar seus sentimentos – e que possamos acolhê-los. Fala ainda da necessidade de que os grupos deem significados comuns a conceitos abertos - “justiça”, por exemplo. Fala da possibilidade de construção de soluções comuns, que são melhor aceitas pelos grupos sociais. Fala de como os aportes da mediação podem auxiliar o nosso atual sistema educacional, sistema este com um regime de notas que incentiva a competição no lugar da colaboração; com pouca ou nenhuma preocupação em ensinar aos alunos habilidades para lidar com os conflitos de forma construtiva; que terceiriza as soluções em sala de aula na pessoa da professora ou de outra autoridade, profissionais que, além de muitas vezes não terem as ferramentas para lidar com conflitos colaborativa e preventivamente, ficam ainda mais sobrecarregados com essa função…

E você, o que aprende nas conversas com seus filhos?

* Suzanna Brito é mediadora e advogada colaborativa. Além da produção desse texto, Suzanna e Ana tem o prazer compartilhar os mais diversos projetos e reflexões.

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