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Mediando vida afora

Eu tinha uma amiga inseparável na época do colégio. Chamava-se Anna Cláudia. Pois bem, a Anna, desde que a conheço – e eu a conheço há anos -, sempre soube o que queria ser quando crescesse: engenheira. Não havia espaço para dúvidas, indecisões, indagações. Ela queria ser engenheira e ponto parágrafo.

Eu, em contrapartida, era só incertezas. Quis ser jornalista,

professora, historiadora e até física, mesmo não sendo capaz de fazer uma conta sem a ajuda da calculadora ou dos dedos embaixo da carteira.

No último ano do ensino médio, acabei optando pelo Direito, mas foi apenas no meu segundo emprego, como advogada no jurídico de um banco eminentemente carioca, que descobri minha verdadeira vocação: escrever cartas.

Lá estava eu analisando determinado contrato de prestação de

serviços quando ouvi um amigo do departamento queixar-se da

empresa de viagem que ele contratara. Era algo sobre cobrança em duplicidade no cartão de crédito. Eu, num ímpeto, ofereci-me para escrever uma carta para a agência de viagem reclamando do ocorrido. A reclamação deu certo e ele conseguiu o dinheiro de volta.

Nascia aí a minha especialidade: cartas enfurecidas. Daí em diante, passei a escrever cartas para todo mundo do departamento que queria reclamar do serviço prestado pelo banco, pela companhia aérea, pela casa de espetáculo, pela companhia de telefonia...

Um belo dia, quando eu já me preparava para sair, recebi a visita de uma menina da área comercial. Estava com os olhos vermelhos, prova inequívoca de que andara chorando. Sentou-se na cadeira ao meu lado e foi direito ao ponto:

- Sei que você escreve cartas para as pessoas que querem reclamar de alguma coisa. Será que você escreveria uma carta para o meu namorado? Uma carta bem dura para ele se arrepender do que fez comigo.

Eu bem que tentei ponderar que não tinha experiência com cartas assim. Ela nem me ouviu. Disse que, como tinha dificuldade de escrever até lista de compra de supermercado, qualquer coisa que eu escrevesse estaria ótimo. Sendo assim, dei-me por vencida e pedi que me explicasse o motivo que a levara até ali. Eis a história:

Ela era do interior do Estado do Rio. Veio fazer faculdade no Rio de Janeiro e não voltou depois de formada. Conheceu o namorado no trabalho. Fazia quase dois anos que estavam juntos e ele ainda não havia sido apresentado à família dela. Como boa interiorana que sou, sei que isso é muito importante.

A oportunidade surgiu com o casamento da prima. A família toda viria de Pádua para o evento. O problema é que, no dia, o namorado simplesmente não apareceu. Daí a tristeza sem fim. Ela ficou a festa inteira explicando a ausência do rapaz e tentando livrar-se das brincadeiras dos primos que diziam que o namorado, esperto, não quis aparecer para não assumir compromisso sério diante da família.

A solidariedade feminina e a lembrança das minhas próprias

desilusões amorosas formaram o combustível perfeito. Fiz uma

bomba em forma de carta e entreguei para a “cliente”. Era uma

segunda-feira e eu não teria mais pensado no assunto não fosse o almoço da quarta-feira daquela mesma semana.

Tinha sido chamada para almoçar com os funcionários da área de câmbio, que eram meus clientes internos no banco. Como gosto de dar risadas, sentei-me ao lado de um dos caras mais engraçados do grupo, o Eduardo. A diversão estaria garantida não fosse o fato de o Eduardo estar atipicamente quieto.

A razão da tristeza descobri com outro amigo da área, no caminho de volta ao banco.

- Ele está assim desde que recebeu a carta da namorada. Parece que ela o reduziu a pó. Escreveu cobras e lagartos e não quer mais vê-lo nem pintado de ouro.

Não precisei de muito tempo para descobrir que estávamos falando da minha carta-bomba. Céus! Era ele o namorado da menina da área comercial! Eu não fazia ideia.

Não tive dúvida: assim que cheguei a minha sala, liguei para o Eduardo e pedi que ele descesse. Fingi nada saber e pedi que ele me explicasse o motivo de estar tão cabisbaixo.

E foi assim que eu soube que ele havia arrumado carro emprestado para ir à festa com a namorada, que alugou terno com o dinheiro que ganhara com o bico de animador de festa infantil, que o carro (um Chevette velho) quebrou na descida do Alto da Tijuca e que, atrapalhado com a situação, fez manobra equivocada ao volante e rasgou o pneu traseiro no meio-fio.

Foi salvo pelo motorista de uma Kombi que o ajudou a trocar o pneu e deu a famosa “chupeta” na bateria. Horas mais tarde, quando finalmente conseguiu chegar, a namorada já não estava mais. Sem saber onde era a cerimônia, voltou para casa.

Assim era a vida sem celular: um desencontro sem fim.

Ouvi o relato e vi o quão equivocada tinha sido a minha carta. Eu escutara apenas um lado da história e toda história, sabemos bem, tem dois lados.

- Eduardo, vamos escrever uma carta para a sua namorada? Vamos contar tudo isso que você me disse.

“Eu quase posso ver você tomando banho, tomando cuidado

para não desfazer o penteado. A franja castanha teimando em

sair do coque frouxo. Posso sentir o toque do creme que você

passa no corpo, o cheiro do perfume colocado atrás da orelha

e na nuca. Isso é sintonia.

Posso ver você se olhando no espelho depois de ter colocado o

vestido preto longo e as sandálias de saltos altos. Nem

precisaria ver para saber o quanto você está bela. Isso é

admiração.

Posso sentir o seu nervosismo à medida que o tempo foi

passando e eu não chegava, o medo de ter sido abandonada,

o pavor de ter que entrar sozinha na igreja. Consigo colocar-

me no seu lugar e sentir o que você sentiu. Isso é empatia.

E sei de tudo isso, porque, como disse o poeta: “de tudo ao

meu amor serei atento”. O que você não sabe, porque a ira,

invejosa, não gosta de ver casais felizes, é como eu me senti”.

E aí a carta discorria sobre os acontecimentos e sobre os sentimentos dele sobre o episódio.

Mediar. Decorrer entre dois pontos. Situar-se entre duas coisas opostas. Verbo transitivo. É o que me diz o dicionário. A vida, todavia, me diz que mediar, mais do que se situar entre extremos, é aproximar, fomentar o diálogo. É reconhecer que não há certo e errado, que estamos diante de vozes que precisam ser ouvidas para que, só então, possam falar a língua do entendimento comum.

Em tempo: o casal reatou na época, mas nunca mais os vi.

* Adriana é advogada formada pela Uerj em 1992. Apaixonada por literatura e música; cinéfila de carteirinha. Entusiasta da mediação.

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