Um torcedor, um policial e, no meio do caminho, a mediação
Era Domingo e dia de clássico no futebol carioca.
Fui designada para atuar no Juizado do torcedor, que funciona dentro do estádio, e cujo objetivo é coibir e punir a prática de pequenos delitos que acontecem em seu entorno.
Tudo estava bem. A alegria dos torcedores que subiam aquelas rampas era contagiante. Fazia uma bela tarde ensolarada.
Dentro daquele pequeno Tribunal conversávamos e esperávamos para ver se surgiriam ou não ocorrências policiais.
Minutos antes do início da partida, entra o Delegado e num tom furioso anuncia:
“Tem uma ocorrência lá fora. Uma discussão entre um policial e um meliante. Já posso pedir para os dois entrarem? O meliante está muito alterado e o policial muito chateado, pois disse que foi xingado e agredido pelo torcedor.”
Pergunto ao Promotor e ao Juiz se posso ir lá fora para conversar com os dois e tentar entender melhor o que houve.
Surpresos com meu pedido que incluía conversar com o policial ofendido e não apenas com o meu “assistido“, eles fazem sinal afirmativo com a cabeça como se quisessem dizer:
“Vai lá. Boa sorte.”
(Aliás, essa é a frase que mais ouço todas as vezes em que me ofereço a buscar uma solução pela via do diálogo para os conflitos.)
Já do lado de fora, inicio a minha conversa com o suposto Autor do fato (expressão comumente utilizada para denominar aqueles que teriam cometido algum crime). Naquele momento, ao meu olhar, parecia apenas mais um torcedor fanático como tantos outros que já tinham entrado para assistir seu time de futebol jogar.
“Boa tarde, Sr. Sou sua Defensora Pública. Me conte o que aconteceu para o senhor estar aqui esperando essa audiência criminal? Houve alguma agressão ao policial? Xingamento?“
"Dra, eu só quero assistir ao jogo. Hoje o meu time tem que ganhar. Eu preciso entrar, por favor. Faça alguma coisa por mim. Não xinguei ninguém. Mas fiquei meio nervoso, sim.... ele me barrou na entrada. Disse que eu não podia entrar com minha bandeirona. Dra, sempre entrei com essa bandeira. Ela é o meu amuleto da sorte. Sou trabalhador, não acredite nessa história dele.”
Ciente de que havia algo que não estava sendo dito ali e que eu precisava montar melhor esse quebra-cabeça perguntei mais uma vez:
“Entendo. Mas eu preciso saber direitinho o que aconteceu. Não tem nada que o senhor esteja esquecendo de me contar? “
Dois minutos de silêncio e, em seguida, num tom envergonhado, ele finalmente me diz:
“Tá bom, eu confesso. Fiquei muito brabo na hora quando percebi que não veria meu time entrar em campo e .....“
“E...?“
“ ...xinguei. Xinguei sim. Mas não sou bandido não doutora, me ajuda, eu sei que errei, afinal ele só estava fazendo o trabalho dele....”
“Tá certo! Reconhecer um erro é um belo gesto sabia? Agora vou até ali conversar um pouco com o policial e o senhor, por favor, fique calmo. “
Dirijo-me, agora, ao policial que em nenhum momento conseguia esconder sua impaciência e desconforto com a minha conversa com o torcedor e agressor.
“Boa tarde, Sr. Policial. Sou a Defensora Pública de plantão e gostaria de saber: como o Sr. se sente?“
Muito surpreso com a minha pergunta, ele responde imediatamente:
“Como a senhora acha que estou me sentindo? Não sei se a senhora sabe, mas hoje é o aniversário da minha esposa. E eu estou aqui de plantão e só volto pra casa amanhã pela manhã. Também gosto de futebol. Meu time joga e eu também não assisto; fico aqui do lado de fora do estádio. Tenho 25 anos de Polícia . Estava apenas tentando fazer o meu trabalho, garantindo a segurança de todos. Não sou obrigado a ouvir desaforo de gente bêbada que não respeita os outros.”
"Entendo perfeitamente... o senhor se sentiu desrespeitado, não é isso ? O Sr . gostaria de ter reconhecimento pelo serviço que vem prestando em todos esse anos de polícia... mas o que vai acontecer aqui neste Juizado é apenas uma audiência criminal onde, provavelmente, o torcedor será responsabilizado penalmente sem espaço para nenhum tipo de conversa ou diálogo entre vocês..."
Neste momento, o torcedor se aproxima e genuinamente fala:
“ Seu policial, eu não sei o que o Juiz vai fazer comigo lá dentro. Mas antes de entrar eu só queria pedir desculpas, esfriando a cabeça eu vi que o Sr. só estava mesmo fazendo o seu papel e a polícia existe mesmo pra isso. Tá certo, tem que fazer as coisas andarem direitinho mesmo.“
“Que bom que o senhor se acalmou e viu que não pode sair por aí xingando policial. A gente é trabalhador, poxa. Dá aqui um aperto de mãos.”
Com os olhos marejados e um sorriso no canto da boca, assisti essa cena .
Em seguida, entro para aguardar a audiência e sento-me à mesa de audiência. Minutos depois, o Delegado nitidamente contrariado anuncia para mim, para o Juiz e para o Promotor:
"Não vai ter mais audiência, o policial me procurou e disse que já estava tudo acertado , mudou seu relato e disse que era pra encerrar tudo ali mesmo... Não sei o que a Dra. Defensora fez lá fora não..."
Espantados, todos olham para mim, curiosos, e perguntam o que eu fiz. Respondo-lhes:
“Eu não fiz nada. Eles é que fizeram. E foi lindo, pena que vocês não viram”